segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Um coelho chamado amor



O meu pai, que tem Alzheimer e perto de 90 anos, dedicou os últimos 30 anos da sua vida à escultura, aos esboços e ao amor que sentia pela minha mãe e que era mútuo, tenho a certeza.
A minha mãe faleceu há cerca de quinze dias. Optámos por o tranquilizar deixando-o na sua zona de conforto que é o esquecimento.

As visitas ao lar onde se encontra, claro, duplicaram, pelo que os meus “dias do Café Arcada” se intensificaram, assim como os desenhos. Gosto das suas críticas porque lhe brotam de dentro.

Hoje, contrariamente ao habitual, dado a minha inaptidão para rostos, decidi inclui-lo num dos meus desenhos e ainda por cima panorâmico e a preto e branco.

Instado a responder-lhe se “aquele” era ele, ao pé do copo de leite com a palhinha, hesitei e, pela primeira vez, porque o incomoda não se reconhecer nos desenhos, disse-lhe que não, que era inspirado num caçador. Não vês que está a olhar para o coelho escondido atrás das flores? aleguei, em fuga.

Voltou a olhar para o caderno, fez um silêncio enorme e acrescentou: gosto muito destes desenhos teus Zé (quando me chama zé em sinal de reconhecimento derreto-me todo), mas para te ser sincero punha as cores, e já agora estou farto de olhar e não consigo ver nenhum coelho.




2 comentários:

  1. Vejo nesta narração (tão enternecedora quanto factualmente dura) várias histórias de amor inspiradoras. Daquelas que superam o esquecimento, os afastamentos e o passar do tempo. É bom, reconfortante, sentir o amor daqui. Não que alguma vez tenha duvidado dele. Mas agora é mais claro. Agora consigo perceber que em todas essas maravilhosas histórias de amor há uma terna base comum: a dedicação.

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